Quando o mundo não nos cabe mais
Esperava no hall do Santa Roza e, com alguns minutos de atraso, foi indicada a entrada lateral para o espetáculo. Nunca visitei o palco do teatro (apenas o do Paulo Pontes) e a experiência de entrar por ali, me fez, logo de cara esquecer o teatro. Um homem – vestindo capote escuro, gravata vermelha, camisa branca, calças combinando com o capote e bota de cano curto – esperáva-nos, olhando atenciosamente para aqueles que adentravam e se aconchegavam da chuva leve que caia lá fora.
As luzes se apagam, acendem depois de curta pausa, e o mesmo homem então começa a conversar conosco. Conta sobre certo dia em que vai ao trabalho como de costume, cheio de considerações sobre seus superiores, afirmando toda sua insatisfação pelo cargo que exerce. Pelo seu modo de vestir e falar, pelos fatos narrados, entramos no século XIX acompanhados pelo tom pretensioso do personagem. Ele fala mal do companheiro que encontra na rua, fala mal até do seu chefe.
Encontra, ao chegar na repartição onde trabalha, a filha do diretor. Extremamente encantado, torce por um simples olhar que traga atenção para si. A frustração do trabalho agora também é frustração amorosa e o máximo que consegue é descobrir que a cadela da moça pode falar. A cadelinha conversa com outro cachorro e relata algo sobre ter enviado uma carta. O nosso homem da repartição finalmente repara o quão estranho é o cachorro falar ou a notícia recente de que duas vacas entraram numa loja e fizeram um pedido.
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Diário de um Louco, peça de André Morais e Jorge Bweres, baseada no conto homônimo de Nikolai Gogol, estréia em João Pessoa depois de viajar por diferentes estados no Brasil e trazer consigo alguns prêmios. Depois de longa espera (resultando em extremo cuidado nos detalhes), finalmente o público da capital pode adentrar no mundo do realismo russo de Gogol e na interpretação viceral de André Morais.
A peça investe na fuga do clichê do palco italiano para trazer uma aproximação maior ao espectador. Assistimos ao espetáculo em cima do palco, bem próximos de André. Vemos o suor, vemos os detalhes da roupa… ele fala bem de perto, olhando em nossos olhos. E nesse bem-de-perto, é que encontramos a loucura do personagem. Nos identificamos de cara com alguém que vive o que todos vivemos: dficuldade de relacionamento, frustração amorosa. E podemos ir mais além: nos identificamos porque, assim como o personagem anônimo que temos à nossa frente, narrando seus dias mais recentes, imaginamos em excesso o que o outro está pensando sobre tudo que nos cerca, sobre nós mesmos.
E nesse imaginar, nessa construção infinita que pode nos levar a diferentes lugares, imagens e referências, aos poucos suspendemos os símbolos dessa ‘vida-real’. A mala e o guarda-chuva sendo pendurados no infinito é dos símbolos mais ricos que já vi num palco (e eu não perdia por esperar mais).
A trilha sonora, produzida pelo grupo Compomus (vanguardista na UFPB, na cidade?), é de uma sutileza perfeita à peça (também premiada). Ela não se expõe como mais importante que o texto ou ato-cênico, não é meramente ilustrativa. Parece mais ser uma representação ideal da mente do personagem: notas agudas de um piano que, às vezes, semi-tona propositalmente: metáfora da loucura que vemos no palco – nada tem de lugar-comum, é construída a partir das pequenas “semi-tonadas” daquela vida.
O homem então descobre que pode ser além do simples consultor titular na repartição. Quem sabe…general, quem sabe…diretor? Descobre que a Espanha está sem rei. Por que não, general, diretor? Por que não, rei da Espanha?
Usando então o cenário (enormes tecidos com escritos à mão, representando o diário citado no título) como manto real e seu relógio como coroa, nosso personagem se auto-proclama Rei da Espanha. Agora sim, tem nome; nome de rei espanhol: Fernando VIII, Rei da Espanha (perdão se erro a numeração, a memória falhou).
Tudo já está suspenso. André Morais é aquele homem durante 50 minutos. Aquele homem é Fernando VIII hoje, ontem ou anteontem – não sabemos. Tudo já está suspenso, exceto o tempo. Por fim, um relógio é pendurado e já não sabemos quanto tempo passou, quanto tempo ainda durará. Sabemos somente que, quando o mundo não nos cabe mais, criamos outro.
“Diário de um Louco” no Teatro Santa Roza dias 28, 29 e 30 deste mês, e nos dias 6, 7 e 8 de julho, sempre às sextas e sábados (21 horas) e domingos (20 horas). Os bilhetes de entrada estão sendo vendidos ao preço de R$ 10,00 (inteira) e R$ 5,00 (estudante).
Ricardo Oliveira
Assitir ‘Diário de Um Louco’ é ver uma loucura extremamente humanizada em que qualquer um de nós pode se encontrar. O texto denso de Gogol encontrou uma interpretação à altura. André Morais nos fala a todos com uma voz que parece reverberar dentro de nós por dias e semanas. Ai da peça, do filme, do livro que não nos move, não nos remove de idéias pre-concebidas, não nos incomoda. “Que o diabo os leve”, como diz André algumas vezes ao longo do monólogo.
Ricardo, bom ler seu texto e saber que outras pessoas também sentiram sensações que eu senti assistindo “Diário de um Louco”.
Eu também nunca tinha assistido uma peça em pleno palco, numa distância tão pequena entre nós e o ator. Aliás, aproveitando o comentário sobre “vemos o suor, vemos os detalhes da roupa” de André, eu vou mais além. Vemos as gotículas de saliva do ator borrifando sua própria sombra. Achei espetacular.
Ao mesmo tempo me senti muito próximo da loucura, e acho que é a intenção do Diário. A partir do momento que você penetra no universo do personagem você entra inevitavelmente na loucura que é existir. E a loucura passa a ser compreendida de uma forma que você começa a se perguntar “eu também sou louco?”
Ricardo, parabéns pelo texto. De parabéns a dupla André/Jorge. De parabéns o trabalho desenvolvido. Quem ganha com tudo isso somos nós, seres ávidos por belos trabalhos artísticos.
“Diário de um louco” é um show em todas as suas vertentes. Do cenário, ao ator, da adaptação do texto, ao figurino, do ambiente, a trilha sonora. Uma peça de tal qualidade que há muito não viamos por aqui em João Pessoa e que interessantemente é sustentada por uma divina interpretação que nem por um segundo deixa a platéia piscar os olhos!
A dinâmica da peça de trazer a platéia para cima do palco é sempre bem vinda. O formato proporciona outros tipos de leituras para os expectadores e o contato com o ator torna o personagem mais real. No entanto, não foi surpresa para mim. Já tinha assistido a peça “Os bichos” no Paulo Pontes na década de 90, onde a compainha encenava tanto na platéia como levava os expectadores para o palco.
Enfim, a peça foi num belo presente para a tediosa noite de sábado onde geralmente não se tem muita coisa para fazer por aqui. Parabéns para o André Morais e toda a produção do expetáculo e para você Ricardo pelo texto.
Abraços!
gostei muito do seu texto vou fazer uma peça com ele tudo de bom para voce beijos de sua fa stefany bez erra alves.
esta bem tyal e muitos beijos.