Excelente texto de Filipe Furtado (dos críticos que mais leio) sobre Eu Sou a Lenda, no site da Revista Paisà. Ele deu cotação 4 de 5 estrelas para o filme, sendo bem mais generoso que o blogueiro aqui.
Eu Sou a Lenda é um objeto estranho: uma superprodução protagonizada por Will Smith que durante cerca de metade da sua duração consiste de pouco mais que o cotidiano de um homem isolado (sua única companhia sendo um cachorro) numa metrópole desolada. A certa altura a trama do filme se delineia (e deve-se admitir que ele perde um pouco do seu encanto), mas o que impressiona em Eu Sou a Lenda é a forma como o filme é seguro do impacto da sua premissa. O diretor Lawrence e seus roteiristas não são especialmente fiéis ao livro de Richard Matheson que serviu de base para o filme, mas reconhecem o quão ressoante a sua idéia central é, como a imagem de Nova York abandonada pode ser poderosa e como Will Smith é o tipo de estrela capaz de forjar um pacto com o espectador que dispensa os fogos de artifício que outros filmes apresentariam para diluir o efeito dos poucos personagens.
Vamos começar por Smith. Dado que a maioria dos veículos por ele protagonizados são blockbusters barulhentos e que sua persona cinematografica tem um lado “esperto” que pode soar irritante para muitos, pode-se ignorar quão bom ele freqüentemente é, e como ele pode facilmente abandonar esta imagem quando o filme assim pede. Aqui, apesar de estarmos diante de uma grande produção de ficção cientifica sobre o fim do mundo, Smith tem poucas oportunidades de existir como ” Will Smith, ícone do cinema de ação” (curiosamente ele ensaia mais sua persona nos flashbacks que detalham sua última noite com a esposa e filha). Aqui, ele existe majoritariamente como presença física imersa numa série de atividades. Sim, ele tem que ocasionalmente fugir ou atirar num bando de zumbis, mas na maior parte do tempo, está entregue a um trabalho concentrado a partir de algumas situações bem rotineiras. É também de uma ausência de narcisismo impressionante: com frequência Smith se satisfaz em ser escada para o cão que é seu único parceiro de cena e a quem ele habilmente concede boa parte do peso do filme.
Neste processo, Eu Sou a Lenda modula com cuidado e atenção o tipo de psicose que a falta de contato humano causa no seu protagonista, o filme não deixa de contar com seus momentos em que o psicológico é sublinhado pelo roteiro, mas é marcante como Smith e Lawrence neutralizam isso seja pelo porte do ator, seja por um ou outro detalhe acrescentado à cena, que retiram dela o peso de mera exposição psicológica.
Um filme de desastre pós-11 de Setembro que parece existir antes de mais nada para extender ao máximo o peso simbólico de sua premissa, Eu Sou a Lenda é um filme concentrado. Chamemos de austeridade blockbuster o que Francis Lawrence faz aqui. Não há uma sequência ou pequeno movimento em Eu Sou a Lenda que desperdissasse a oportunidade de ressaltar o peso apocalíptico de suas imagens. Se a adaptação mais famosa do livro de Matheson – a de 1971 – se propunha a reimaginar a trama para que Charlton Heston se confrontasse com mutantes que eram simbolicamente ligados à contracultura, a versão de Lawrence está mais interessada num metacomentário do desastre.
O que por fim torna Eu Sou a Lenda um filme marcante que existe como exato oposto de algo como Independence Day ou Transformers , é sua enfase na fragilidade humana. Cada imagem que Lawrence e sua equipe extrai do seu cenário pós-apocaliptico reforça tanto a fascinação do espectador com toda a idéia de filme de desastre e de como ela está ligada, por fim, a nossa própria fragilidade. O centro do filme está na visão de Manhattan desolada, com efeitos especiais que reforçam de maneira impressionante como uma grande cidade se revelaria após ser essencialmente abandonada por anos. É um filme pós-desastre, onde a ênfase está justamente no pós, no poder de uma imagem de captar o peso histórico de um desastre já distante. Não surpreende que o filme coloque tanta ênfase no seu ator central. Para um grande espetáculo hollywodiano, Eu Sou a Lenda é surpreendentemente humano.
Filipe Furtado
Ricardo Oliveira