A partir de hoje o Diversitá inaugura uma série de publicações de outros autores que nos gratificam na leitura ou têm nos ajudado na formação crítica. Luis Fernando Veríssimo é o escritor que me ensinou a ter prazer em literatura, quando conheci As Mentiras que Os Homens Contam, em 2001. Foi Banquete com os deuses que me incentivou a conhecer mais filmes, autores e músicos que eu nunca tinha ouvido falar. Neste livro, de onde sairão alguns dos textos publicados aqui, Veríssimo faz o que já não se costuma empreender em textos de crítica cultural: imprime sua pessoalidade e um apanhado social que está diretamente ligado ao objeto de cultura analisado retratado. Sempre com bom humor e sua escrita impecável (que aprendi a valorizar ainda mais através de Paulo Brabo), Veríssimo nos faz lembrar que filmes, livros, músicas (e o nosso jeito de receber tudo isso) não está, de maneira nenhuma, desconectado da vida.
Começo a série com um dos meus preferidos, entitulado “Pulp”, no qual Veríssimo fala sobre Pulp Fiction, de Quentin Tarantino (no qual ele traz o que considero a melhor explicação para a ordem cronológica desordenada). Traremos também “goiabas roubadas” de outros autores, à medida que você mesmo também sugerir. Espero que gostem.
“Pulp”
Com exceção do “Gimp”, aquela figura vestida de couro que tiram da sua jaula para morrer sem dizer nada, todo mundo fala muito em Pulp Fiction. Todos têm teses sobre tudo, desde a massagem nos pés até a melhor maneira de disfarçar sangue no estofamento do carro, passando pelo hambúrguer, o milk-shake e as vantagens de uma argola na língua e um celular num assalto a banco. A banalidade sem parar dos diálogos funciona como um contraponto para a violência. Mas não estamos vendo a mitificação do banal, a autocelebração de uma civilzação vazia. O filme é sobre o destino e o fortuito, mas é acima de tudo sobre os prazeres da vacuidade: tudo pode acontecer nesta Los Angeles sem significados, as pessoas podem dizer o que quiserem e um diretor pode brincar com o tempo, com a narrativa e conosco como quiser.
A literatura policial barata, impressa em papel feito de papel reciclado, dizia alguma coisa, mesmo que sem sempre soubesse o que estava dizendo. Tarantino quer o “pulp” sem a mensagem, quer resgatar do gênero só o papel sujo e as tramas insólitas. Quando o texto do filme tem coerência, ou pelo menos grandiloquência, como nas citações bíblicas, é uma “mensagem” falsa que só se liga com a imagem pelo contraste. Tarantino não faz cinema noir, destrói a principal pretensão do cinema noir, que era justamente usar a linguagem de um gênero menor para sugerir algo maior. A cena que Tarantino mais gosta de fazer, tanto que fez várias, é a de pessoas apontando armas ao mesmo tempo e decidindo como resolver o impasse. O gênero policial reduzido à sua essência, sem literatura, como o pênalti é o futebol sem a retórica: duas ou mais pessoas lidando com as probabilidades de arrebentarem a cara um do outro sem perder a sua. O diálogo, numa situação dessa, é secundário, é só um ruído feito para intimidar ou dar coragem ou se enganar. E, quando não estão se apontando pistolas, os personagens de Tarantino falam compulsivamente para não serem confundidos com algum lacônico e conciso personagem de Raymond Chandler, numa outra Los Angeles. Para que não se diga que seu filme é parecido com qualquer outra coisa jamais feita no passado.
Luis Fernando Veríssimo em “Banquete com os deuses”. Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2003. Página 69.
* Veríssimos é uma série do Diversitá que republica textos de Luis Fernando Veríssimo sobre artes.
Ótima idéia Ricardo. Recentemente saiu na Zero Hora um texto do Veríssimo falando do Robert Downey Jr interpretando Sherlock Holmes vale a pena dar uma procurada
Procurei, achei e vou republicar aqui. rs.