* Em sua narrativa de memórias da infância, David Small não nos priva do sofrimento que viveu em casa. Seria fácil para ele, assim, tomar a postura de juiz dos seus pais, tantos anos depois: em seu lar repleto de frieza e falta de atenção, aos 14 anos descobre que um caroço no pescoço, ignorado pela família, era um câncer que o faria perder a força vocal. Mas não é isso que o autor faz.
* “Cicatrizes” possui um ponto de vista complexo em sua narrativa: o que vemos é uma criança crescendo e descobrindo emoções, vivências que o afetam; o que lemos, porém, é a análise posterior do autor, relembrando tudo aquilo que viveu com um cuidado poético. Ele entende hoje, por exemplo que cada familiar tinha seus ruídos e silêncios – formas de expressar, tantas vezes, aquilo que se quer (ou não) dizer.
“Minha mãe tinha uma tosse chata. Às vezes, chorava em silêncio às escondidas e batia as portas dos armários da cozinha. Era a linguagem dela”.
* O olhar é nosso cinema autoral para o outro e em “Cicatrizes” Small parece sempre representar a fúria e as fugas dos seus pais com um par de óculos sobre os olhos. Cheios de expressão, os rostos parecem ainda mais perturbadores quando são enquadrados sem a vida das retinas.
* David Small o tempo todo nos leva aos seus sonhos, com ou sem avisos. O onírico, que talvez se apresentasse como uma saída para a crua realidade vivenciada, apenas indica que Small tem um tanto de Bergman: há bastante poesia nos sonhos, mas não é por ser poesia que ela terá de ser agradável.
“Cicatrizes” (“Stitches”)
de David Small (2010)
Editora Leya / 336 páginas / R$ 39,90
Poucos quadrinhos dão tanta responsabilidade aos traços quanto Cicatrizes. Do monossilábico ao quase sempre mudo, o trabalho de David Small me parece querer gritar na cara, colocando descaradamente todas as angústias passadas pelo autor em forma de rabiscos.
João, eu acho que David sempre quis gritar…mas a HQ é que é o seu melhor grito mesmo.