Breves tópicos sobre a real ficção de “Invocação do Mal”

1. Diferente de um filme qualquer que seja baseado em fatos reais, Invocação do Mal depende totalmente do fato de que ele se credencia como real. O extra-filme determina a intensidade da nossa relação com a crença do que acontece na tela, com o envolvimento direto às situações que somos apresentados. Resumindo, temos mais medo porque acreditamos que tudo que se passa na tela aconteceu de fato. Análise que não é novidade, muito menos para quem acompanhou o lançamento da fita. O marketing o direcionou para isso e até a Veja publicou um interessante vídeo em que a sra. Warren mostra a casa onde vive, da época em que a história se passa até hoje. Filmes como A Bruxa de Blair ou Contatos de 4º Grau brincam com isso, mas nenhum deles se baseia, de fato, em eventos que aconteceram.

2. Invocação do mal é excessivamente didático. O casal está ensinando às famílias que atendem sobre os fatos que investigam. O filme está nos preparando. De certa maneira, é didático de modo a subestimar nossa capacidade de sentir as situações e aprender sobre elas à medida que acontecem. Por outro lado, a crença de que assistimos a fatos críveis, verossímeis, é abastecida pela didática do casal Warren: acreditamos mais porque aprendemos com eles – que são apresentados como figuras de autoridade que dão aulas sobre o assunto. Logo, o que dizem é verdade. Aprender com eles, porém, também é artifício fílmico: ao longo do filme, o que absorvemos em tese, vemos acontecer na prática. O suspense e o medo se sustentam no fato de que, a partir da didática, temos conhecimento prévio; o medo não existe se não há precedente referencial – imaginado ou vivenciado.

A família real Perron atualmente, junto às atrizes que a interpretam na época em que se passa o filme.
A família real Perron atualmente, junto às atrizes que interpretam as crianças do filme.

3. O real também é ficção. Não há nenhum baseado-em-fatos-reais que resista à tentação de uma elaborada edição de planos e contra-planos que permitem a construção do horror na tela. O desenvolvimento do símbolo das palminhas como elemento que  explica o contraste entre a diversão das crianças e a invasão sobrenatural que toma a casa e as afeta; os momentos de visões do passado, apresentados em planos que se integram ao presente da história, mesmo que revelando um flashback (a cena da árvore). Todos estes recursos, de linguagem cinematográfica, apropriados para o gênero de terror/suspense, configuram também Invocação do Mal como uma história real, baseada em ficção. Do contrário, ficaríamos com as histórias contadas, em tom documental*, pelas filhas da família Perron. O fato de que a família real parece atormentada até hoje, no entanto, nos mostra uma ficção que retorna ao real, sai da tela e também nos perturba.

Vera Farmiga e Patrick Wilson em momento "documental" de Invocação do Mal
Vera Farmiga e Patrick Wilson em momento “documental” de Invocação do Mal

4. Acreditamos porque “é real”, mas reconfiguramos a percepção do presente graças ao modo como a ficção nos apresenta os fatos baseados na realidade. Invocação do Mal termina como um perturbador espelho da família Perron, polido pelo diretor James Wan, ao qual somos convidados a contemplar no filme e fora dele.

*Em trecho bastante curto o filme usa da linguagem documental, em um modo de registro amador. Uma câmera subjetiva (como que o olhar de um dos ajudantes de Warren) acompanha os caça-fantasmas numa visita ao porão da casa. Um dos melhores momentos do filme, em que de um único ponto de vista (de um personagem incrédulo) a montagem do filme elabora um temor convincente sobre o tal espírito que toma a casa.

Falei mais despretensiosamente sobre o filme no Podcast Diversitá #11, nas dicas da semana.

Trailer

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