A desconstrução da masculinidade noventista em “Cancún”, romance de Miguel Del Castillo

Ainda que não se apresente assim, Cancún é bastante sobre um tipo de masculinidade, sua desconstrução ao redor da ideia de paternidade e a influência da moral cristã-evangélica. O primeiro romance de Miguel Del Castillo (Companhia das Letras, 2020) é um coming of age literário ou, como gostam de chamar, “romance de formação”.

Enquanto narra a história do protagonista nos anos 1990 em terceira pessoa, e a presente (nos anos 2010) em primeira, o livro nos conecta a um Joel nessa formação: o ser e fazer masculino na adolescência e na vida adulta, sendo o registro temporal dessa última ligada a rituais de passagem intensos como da primeira.

Os desafios de pertencer a grupos, de descobrir o sexo, de se entender como gente (como homem) permeiam a adolescência, narrada com distanciamento de uma escrita mais fria e direta. Na vida adulta, a redescoberta dos esqueletos no armário (seus ou do seu pai), a sensação de perda, a obsessão por descobrir uma narrativa perdida. Contada na primeira pessoa, tem um tom mais contemplativo, subjetivo, com a escrita dando tempo ao que precisa de mais tempo. Essa diferença narrativa funciona melhor à medida que o livro se desenvolve, mas por vezes a gente se pega achando o trecho adolescente frio demais para tanta coisa acontecendo ali.

Em ambos os casos, há um sentimento constante e que delineia o subtexto sobre a desconstrução de uma masculinidade cruel às formações que se vive. Joel sempre sofre porque sente que precisa se provar: não quer ser o isolado, não quer ser o tímido, não quer ser o boca virgem e, graças ao contato com a religiosidade cristã-evangélica, descobre que também não quer ser o impuro, o pecador.

Por outro lado, na vida adulta, diante da perda do pai, Joel se vê refletindo sobre tudo que sabe sobre ele, mas especialmente sobre o que não sabe. Desde início somos apresentados (na visão adolescente) a essa figura carismática, mas misteriosa sobre seu trabalho e os motivos que o levaram a morar alguns anos em Cancún. Ao redor da ideia do mistério sobre um possível sequestro do pai em terras mexicanas, descobrimos mais dessa relação de masculinidade. Dessa vez, sobre um filho que cresceu com um pai distante, mas que se fez sempre presente com mimos na infância e adolescência: video games (citados habilmente para pontuar a época), viagens e, ao morrer, parece deixar o maior deles (que não vou revelar aqui, mesmo sendo óbvio).

Estamos vivendo a época em que nascidos nos anos 80 e crescidos nos anos 90 estão nos seus 30 e poucos anos e suas histórias começam a ser contadas. Da mesma forma que aconteceu no início dos anos 2000 com os anos 80, vivemos tempos de filmes como mid90s, de Jonah Hill, e livros como Cancún, de Castillo. Enquanto narram os dramas do amadurecimento, ambos carregam alguma nostalgia, citando especialmente a cultura pop. Ainda que não chegue a ser tema predominante no livro, Cancún investiga as vivências de uma época que ainda não é assunto tão recorrente assim no mundo ficcional.

No romance, a relação com essa figura paterna complexa, sempre trazendo sensações entre amor e indiferença, dialoga diretamente com outros dois livros, também de leitura essencial: Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera (2012) e Enquanto Deus Não Está Olhando, de Débora Ferraz (2014). Em todos, há esse mistério e essa busca que evolui para obsessão pela verdade sobre seus pais (o pai, no caso). Em Castillo, no entanto, há esse sentimento específico de desconstruir uma narrativa masculina: seu pai merece ser para ele um ideal de “hombridade”, de ser “homem”? É nas descobertas sobre a vida possivelmente escusa do pai que a coisa ganha uma camada de realidade única, por inevitavelmente tocar em temas centrais ao Brasil/carioca de hoje e, assim, também na “política” de ser homem.


Quero terminar o texto fazendo um comentário específico sobre o modo como o livro retrata a relação do protagonista com a fé evangélica no país. A vivência retratada de fato saiu de quem realmente viveu e conhece a dinâmica de contato de adolescentes, como dá pra saber dando uma passada básica nos tweets de Miguel.

E não posso deixar de ressaltar que o livro é tão exato que parecia estar descrevendo a minha própria experiência (talvez por isso tenha recebido a indicação do amigo Tiago Germano dizendo que lembrou de mim na leitura). A jornada de muitos com o “ser crente” sempre começa por pais levando-os a cultos dominicais, sendo convidado a cultos de jovens aos sábados e assim para acampamentos/retiros, depois para batismos e iniciando essa progressão de uma “vida santificada”, de separação “das coisas do mundo” (exceto na vida íntima, como se prova no livro e na vida).

Não vou me aprofundar aqui sobre esse temas, por não ser o caso, mas a fidelidade do livro é impressionante, o que reforça pra mim a possibilidade de toda obra ser semi-autobiográfica, o que é bastante comum em livros de estreia. E, por conta disso, talvez a sua maior leitura complementar seja a obra-prima dos quadrinhos, Retalhos, de Craig Thompson. Especialmente porque ambos fazem com empatia o processo de desconstruir em seus protagonistas esse ideal religioso, sem desmerecer o que viveram. Ambos narram suas experiências de proximidade e distância da igreja, mas sem perder de vista a sensibilidade sobre o que construíram ali. Falar mais que isso vai ser entrar em território que pode estragar sua experiência de leitor.

Ler Cancún é se descobrir na fluidez de uma leitura eficiente em narrar uma época e uma visão de mundo ao redor de um personagem extremamente verdadeiro. Ainda que algumas vezes se atropele na velocidade dos fatos (ou até esqueça alguns deles), o livro nunca perde o fio da meada do que decide ser mais importante em sua narrativa: a descoberta do que significa crescer.

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