Ensaio sobre a Cegueira

Diante de um filme que se propõe a adaptar uma grande obra literária, existe a chatíssima tendência das comparações. Assim, começo estas palavras afirmando: sim, há impacto com a mesma intensidade. Agora, pois, tentemos esquecer o comparativo livro/filme, e falemos do que está na tela.

Se não há exatamente pontes a serem feitas entre este e o filme anterior do diretor (O Jardineiro Fiel), nos deparamos ao menos com a questão autoral. Meirelles confirma seu estilo na câmera, no tratamento dado às situações, no processo de construção da obra. Este fato não se afirma apenas nas imagens que recebemos durante o filme, mas também no que está anterior a isso: o blog atualizado pelo diretor nos mostrou a sua paixão pela coisa chamada ‘dirigir um filme’.

Falamos então de uma obra sincera e que, neste mesmo sentido é docemente amarga. Doce pela relação criada com aqueles que acompanharam todo o processo, inclusive fazendo a leitura da obra, como eu. Porque é saboroso enxergar na tela algo que, de repente, parece que você fez parte da construção. É amargo pelo que nos mostra: Ensaio sobre a Cegueira, na verdade, é um espelho.

Tudo aquilo que os personagens têm de normalidade e moralidade, parece estar prestes a se perder, inevitavelmente, pela força da situação proposta: uma cegueira branca contamina rapidamente a cidade onde vivem – sem razão física ou metafísica. O que foi realmente construído entre as vidas, para que se mantenha firme mesmo diante da impossibilidade de se ver o outro?

O outro, por sinal, nos parece questão essencial para o filme. O problema não é exatamente estar cego, mas o fato do outro também estar – e todos eles, exceto por uma pessoa. A mulher do oftalmologista, interpretada por Juliane Moore, é a única que carrega o peso de ver. Isto, ao contrário dos ditados, não faz dela rainha, mas, inevitavelmente, escrava. Liberdade seria, portanto, poder não ver.

Meirelles faz uso dos brancos para nos imergir no mundo dos que perderam a visão, e seus contrapontos estão lá com excelência: as cenas de escuridão fazem com que nos perguntemos sobre o que exatamente é mais aterrorizante: ver os fatos como são, com pouca luz e horror desconcertante, ou nada ver e, por seqüência, não conseguir impedí-los ou evitá-los?

A trilha insistente e magistral do grupo Uakti, por tantas vezes, se incorpora à mise-en-scene como se revelasse o ruídos internos dos corpos, das sensações caladas dos que simplesmente já não encontram modo de expressá-las. Por isso, expressam no tato, no toque: o sexo por desespero, como moeda, como alívio. Para seqüências em que encontramos estes fatos, Meirelles usa do som e dos índices visuais (a partir do branco ou do negro) de forma a nos causar impacto sensorial pouco visto no cinema recente, me remetendo de certo modo, em alguns planos, ao trabalho Stan Brakhage no uso do claro-escuro.

No mundo de Saramago e Meirelles, há um deus que fechou seus olhos para humanidade. Questão final e óbvia, na verdade, é se diante do que vemos, a dúvida não seria sob outra perspectiva: não teria esta humanidade, fechado os olhos para Deus?

É, tem hora que a gente tem de perguntar.

Ricardo Oliveira

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
de Fernando Meirelles

8 Replies to “Ensaio sobre a Cegueira”

  1. E aê Ricardo! Muito bom poder te ler de novo.
    Foi bom também te conhecer. =D

    O filme é realmente excelente. Ficou impregnado na minha retina até agora. Quando paro um tempo e fico sem pensar em nada, logo as cenas do filme reaparecem em minha mente.

    Nessa comparação filme/livro meu único comentário é que pude perceber, através do filme, uma história mais feminista, na qual a mulher – e não só a do médico – mostra força de carregar a humanidade. Não que isso seja menor no livro, mas que no filme Julianne Moore deixa latente.

    Também acompanhei o blog de blindness. Pensei que isso me traria alguma dificuldade de ver o filme simplesmente como estava sendo apresentado; que a cada cena criaria um filme por trás contendo os relatos, dificuldades e curiosidades, e que isso me “tiraria” temporariamente do filme. Mas ter memória ruim às vezes é muito bom. Deu tempo para esquecer um bocado de coisas. E das que me lembrei não foram capazes de me desviar completamente.

    Abração!!!

  2. nunca vi um assunto tão repetitivo nos últimos anos.
    quem é mais livre: aquele que vê ou o que nem sabe
    da existencia de certas coisas? fiquei curioso pra ver
    o filme e, mais ainda, pra ler o livro. ótimo post!

  3. Oi Ricardo,

    Achei teu blog pelo de Astiê. Não lí o livro, mas ví o filme e gostei muito.
    Por tudo que se falou antes da estréia, fui ao cinema sedenta por não perder nenhum detalhe. E o filme me surpreendeu…
    Deixei minhas impressões no meu blog também.
    Ah, e parabéns pelo seu! Muito bacana!

    Um abraço

  4. Realmente é muito difícil não fazer a comparação com o livro, eu me peguei muitas vezes fazendo. Sobretudo assim que terminei de ver.

    Como você, também tive esse gostinho de acompanhar os sentimentos do Meirelles escancarados no blog e, sinceramente, acho que isso me impediu de ser muito cruel em avaliar o filme.

    Porém, como foi dito repetidas vezes que as cenas com o Gael eram muito fortes, e minha expectativa estava mosntruosamente grande, acabei me decepcionando um pouquinho. Mas ainda assim, achei o filme muito bom.

  5. Tudo bom Ricardo?

    Paramos um tempinho lá no Telacast, mas estamos de volta. Infelizmente não vamos comentar tão cedo o filme Ensaio Sobre a Cegueira porque ainda não chegou nos cinemas da província Natal, rsrsrsrsrs. Só Deus sabe quando chega por aqui, talvez, quem sabe, quando sair de cartaz daí de JP eles mandem a cópia pra cá, né?

    bjs

    Myrianna

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