[Cinema] Sobre ‘estar’ e ‘ser’ – ou: uma análise do ‘Avatar’, de James Cameron, por Ricardo Oliveira

Jake Sully (Sam Worthington) em "Avatar", de James Cameron

O texto abaixo não trata-se de uma resenha de apresentação, cujo objetivo é dialogar com aqueles que desejam assistir o filme. O objetivo principal deste artigo é analisar certas perspectivas de Avatar, portanto, revelando detalhes que podem ser considerados ‘spoilers’.

Sobre ‘estar’ e ‘ser’

Mais do que sobre estar no espaço do outro, de forma permitida ou não, Avatar é sobre ser o outro. Acontece que essa percepção pode ficar resumida, em certo olhar, apenas ao enredo no qual vemos Jake Sully (Sam Worthington) estar, literalmente, na pele de um avatar humanóide da raça Na’ vi. Através de câmaras que permitem a vivência de uma realidade já não mais virtual (aquilo efetivamente está acontecendo), Jake descobre que “isto é ótimo”. Esta frase, junto a um olhar sorridente do próprio avatar, é emblemática porque revela, como aqui proponho apresentar, um olhar não apenas sobre a história de Avatar, mas sobre o cinema e tantos outros aspectos da vida na era cibernética.

“Tudo está de trás pra frente agora, como se lá fora fosse o mundo real e aqui dentro fosse o sonho”O processo cinematográfico é vertiginoso: um ator é convidado para representar um personagem num filme. Este personagem viverá 60% do enredo noutro corpo: um nativo do planeta Pandora, fotorrealisticamente modelado em 3D e elaborado digitalmente. O ator não está naquele corpo, mas projeta-se nele através de uma roupa com pequenos sensores por toda sua extensão, junto a outros que captam as mínimas expressões da sua face. Durante os outros 40% da história, o ator interpretará um humano como ele, exceto por um detalhe importante: é paraplégico.

É neste contexto que uma frase enfatiza o processo labiríntico: “Tudo está de trás pra frente agora, como se lá fora fosse o mundo real e aqui dentro fosse o sonho”. Mesmo que Jake esteja realmente vivendo quando está em seu avatar Na’vi, ele olhou para os primeiros instantes naquele corpo, como se vivesse um sonho – depois tudo se inverte. É assim que esse processo será descrito pelo líder do clã Omaticaya: os avatares são “caminhantes de sonho”. A frase de Sully e a expressão de Eytucan (o líder), não deixam de representar o que pode significar atuar, interpretar, estar no papel de outro. Atores caminham em sonho; espectadores entram no sonho de atores e se projetam na vida dos personagens.

O avatar de Jake SullyPara Sully, mais que apenas experiência, isso é oportunidade: lhe é prometida uma medula restaurada se ele conseguir informações sobre os Na’vi e ele poderá andar novamente. Todavia, no seu mundo de sonho (real), onde ele já é um Na’vi, ele anda; mais que isso: corre, pula, voa com a ajuda do seres alados com os quais estabelece conexões vitais, aqui colocadas frente a frente com as conexões cibernéticas entre homem e máquinas de destruição.

Diversos filmes já contaram a história do intruso que torna-se aliado e luta contra aqueles a quem antes defendia. A maioria das histórias fala justamente sobre as invasões do “homem branco” às terras indígenas em todas as américas. Em tantas obras, como no belo O Novo Mundo (Terrence Mallick, 2005), a figura do forasteiro em meio aos índios varia em seus significados. Há os dilemas de preconceitos da tribo, a ignorância do estrangeiro, o aprendizado, o tornar-se parte. Há, inclusive, a integração com a natureza, a relação do corpo com o habitat natural dos indígenas.

avatar-newphotosaug19-580-01O que James Cameron nos traz de novo aqui, é uma dimensão mais profunda na analogia da interpretação, dos duplos, do viver através de um corpo que representa algo intenso para os Na’vi. O que falta ao filme talvez seja a dimensão de contemplação que há na obra de Mallick, por exemplo. Diante de toda a estonteante beleza digital promovida por Cameron, num fotorrealismo absurdamente assustador, sua câmera não respira o ar de Pandora. Falta-lhe, em certos instantes, um andamento mais leve, mais cadenciado e harmônico à dinâmica desta rede que permeia o planeta e seus habitantes. Cameron filma Jake voando em seu ikran, descobrindo a beleza de Pandora, do mesmo modo como filma pilotos em seus helicopteros de guerra, preparados para destruir.

Enquanto Sully tenta ser um omaticaya legítimo, é importante não esquecer que há um Sam Worthington tentando representar ambos de forma crível. Suas expressões e trejeitos estão melhor representadas no corpo azul digitalmente elaborado de um Na’vi ou no corpo imobilizado por uma paralisia? A perfeição técnica do 3D de Avatar, em certos instantes nos fará esquecer que assistimos um espetáculo virtual. Em dois planos espelhados, enquanto os olhos de Jake Sully se fecham no primeiro, no último se abrem. Sua questão central, enfim, deixa de ser estar, para simplesmente ser. Agora ele pode Ver.

3 Replies to “[Cinema] Sobre ‘estar’ e ‘ser’ – ou: uma análise do ‘Avatar’, de James Cameron, por Ricardo Oliveira”

  1. E sem falar do lado cotidiano que estamos vivendo hoje, que é o homem (e suas maquinas) distruindo sem se preocupar com o resto que tem a sua frente (natureza/futuro) pela ambição. Os nativos mostram bem o lado ECOLOGICAMENTE CORRETO e o como se deve viver com a natureza (interligados). Já o “homem” só consegue ver essa ligação quando vive aquela realidade. Gostei muito do artigo, parabens!! Queria salientar a arte grafica das paisagens, completamente psicodelicas, MUITOOOOOOO BOM GOSTO!

  2. Excelente filme! Assisti ontem e fiquei muito impressionado com o realismo do 3D e com o mundo de Avatar. A conexão entre os Avatar e seus “animais de extimação” é incrível, fiquei inquieto na cadeira do cinema, um filme lindo e que me lembrou em muitos momentos como diz o texto acima, a ‘invasão’ dos europeus às américas. Parabéns pelo texto Ricardo!

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