“Mãos de Cavalo” é o coming of age de Daniel Galera

Quando citei em meu texto sobre Cancún, de Miguel Del Castillo, que o livro dialogava com Barba Ensopada de Sangue devido à temática de buscar a verdade sobre entes queridos (avô e pai), não imaginava que no universo do amadurecimento da adolescência era com outro livro de Daniel Galera que ele se conectaria ainda mais.

Talvez todo esse processo de ficar achando relação entre livros seja mero exercício de um leitor preguiçoso como eu, mas não consigo evitar. Em Mãos de Cavalo (2006, Cia das Letras) , Galera narra a história de Hermano, cirurgião plástico e escalador, em sua adolescência (dos quatorze aos dezessete anos) e vida adulta (aos trinta) em capítulos intercalados entre cada tempo. É o coming of age do autor, claramente discutindo em paralelo ao presente processos de amadurecimentos e descobertas em momentos diferentes da vida, com os trechos do passado servindo como um grande processo reflexivo do narrador, ainda que na terceira pessoa.

Apesar de achar que o livro começa pedindo muito da paciência do leitor com o primeiro capítulo, Mãos de Cavalo logo justifica o porquê dessa narrativa sem pausas, quase febril e obstinada. Seu protagonista tem como essência se colocar no limite para testar as capacidades do corpo desde jovem e por isso se decide como médico cirurgião plástico na vida adulta. Hermano, cujo apelido é mãos de cavalo, se conecta à cidade de Porto Alegre como alguém que está vivendo um GTA em terceira pessoa ou um filme de ação em que é o diretor e o ator principal ao mesmo tempo. Está dito na epígrafe:

“Eu caminhava para a escola e ia imaginando planos em que uma grua subia aos poucos e me via lá embaixo como um pequeno objeto no meio da rua, caminhando para a escola”, citação de Nicolas Cage.

Esse colocar-se em perspectiva é o cerne da obra que discute o porquê da gente fazer o que faz na adolescência, as consequências do que faz e o que carregamos com a gente por toda vida. E essa reflexão é intrínseca ao próprio personagem desde jovem, como o livro diz:

“A maldita câmera que era sua única amante. Como uma esposa traída que, movida por um insight feminino, telefona para o trabalho do seu homem no exato momento em que ele está metendo por trás na secretária sobre a mesa do escritório, a câmera imaginária que era a companheira de Hermano também tinha um sexto sentido infalível e detestava ser substituída. Às vezes a câmera surgia nos instantes cruciais de sua existência, às vezes captava a realidade de momentos banais e solitários, quando estava correndo em Ipanema e começava a chover, quando descia do ônibus e entrava pelo portão da frente do colégio, quando andava de bicicleta em alta velocidade, por horsa a fio, atravessando diversos bairros da cidade, ou quando subia o Morro da Polícia como se estivesse sozinho, praticamente ignorando a companhia dos amigos, pois havia apenas ele, o morro e a câmera. Não era simplesmente sentir-se observado, imaginar as testemunhas indefinidas para cenas de sua vida. Era como se ele mesmo se destacasse do corpo para se tornar o observador. Era ele quem operava a câmera, quem saía da cena, atravessava a membrana entre a realidade e a imaginação e escolhida uma cadeira na plateia vazia de um cinema escuro”.

Pela citação acima é notável a habilidade da prosa de Galera, que desde Até o Dia em que o Cão Morreu tem sido dos meus autores preferidos. Em Mãos de Cavalo, ele consegue imprimir como sempre os estranhamentos dos homens urbanos deslocados de seu mundo, em busca de soluções plausíveis para o caos interno e externo que enfrentam. Nessa história, entretanto, diferente das suas outras, estão lá os temas comuns às narrativas de amadurecimento: o pertencimento a grupos de amigos, as provas para se superar e mostrar que merece pertencer, as descobertas do amor e do sexo, os erros infantis e as decisões adultas.

O clímax do livro é visceral e inesperado, talvez o melhor de Galera (me falta ler só o premiado Cordilheira, posterior a Mãos de Cavalo), com direito a referências diretas a Mad Max e indiretas a Oldboy. Mãos de Cavalo é obra sólida de um autor que ainda em início da sua jornada já dominava a escrita e parece conseguir fazer dela o que bem entende.

PS.: Há um filme de 2016 que adaptou a obra (tem na íntegra no YouTube) mas não parece fiel a obra nem empolga para assistir.

 

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