Alguns pensamentos sobre “Desvio”, primeiro longa de Arthur Lins (PB)

Diferente do que talvez espectadores-cinéfilos de grandes cidades comumente retratadas no cinema brasileiro sintam, existe algum bom estranhamento para um paraibano se ver em um cinema realista sobre sua terra. Porque Desvio tem isso como sua principal virtude: retratar habilmente um encontro de uma série de personagens facilmente identificáveis em nichos muito particulares do universo paraibano (seja pessoense, diante do fato de que várias cenas do filme foram filmadas em João Pessoa e não em Patos, ou patoense – que pra mim particularmente rende pequenas descobertas). E quando se fala de longa-metragem, isso ainda é novo pra gente.

Deve ser óbvio ao espectador não nordestino também identificar no filme tipos comuns de cenas “undergrounds” que hoje e sempre, em algum nível, representam o que significa estar à margem da sociedade em qualquer lugar – em paralelo àqueles que de fato estão “à margem” pelo isolamento físico, como o encarcerado Pedro. Assim, ainda que o filme não me pareça conseguir resolver todas as pontas que apresenta dos diferentes encontros e desencontros de Pedro (e são muitas), Desvio sabe de quem está falando e como quer falar. Nesse sentido, a caracterização de Daniel Porpino salta aos olhos para potencializar tudo isso, especialmente para quem conhece trabalhos anteriores do ator, seja no teatro ou na publicidade. Transformado fisicamente de forma muito evidente (mais magro, com postura, caminhar e expressão facial muito definidas), Porpino carrega o filme sempre deixando o passado de Pedro muito evidente em seu rosto. Se em algum nível incomodam alguns dos diálogos presentes no filme (tanto por texto ou atuação), especialmente no núcleo de amizades de Pamela, as conversas travadas com Pedro funcionam na maioria das vezes. “Ia ser engraçado você conhecer minha família”, diz uma personagem ao protagonista, que quando pergunta por que, recebe um simples “porque família é engraçado”.

Desvio, em algumas camadas, dialoga com Arábia (2017) de João Dumans e Affonso Uchôa. Ambos narram esse homem brasileiro de trinta e poucos, meio errante, meio procurando sentido, que em algum momento “se meteu em confusão”, criando conexões através do trabalho, da música, em um universo interiorano, em que as estradas sempre estão presentes, ainda que em sentidos diferentes. Ainda que hoje Patos não seja tão distante quanto era em tempos de piores estradas, a cidade é das mais importantes do interior da Paraíba, sendo símbolo para esses anseios frustrados de Pamela em querer sair “desse inferno”. Conhecida por ser extremamente quente, o “inferno” de Patos para Pamela parece também ressoar em Pedro como um deja vu inevitável da sua condição, em que pesem as rimas narrativas entre o quarto quente da sua casa no interior e a sela da prisão para onde tem que voltar toda noite.

Quando nos é revelado o que ele escolhe fazer ao final, o que inicialmente parece um grande “abismo” (no sentido moral do personagem), se torna ponte para uma espécie de epifania conclusiva. Em que, diante de alguém que parece estar em situação pior do que ele (em uma referência sutil ao curta O Plano do Cachorro, do mesmo diretor) o personagem hesita por encarar alguém que de fato não parece não ter nada a perder e por isso não tem medo algum.

Pedro, afinal, pode ainda não ter decidido tudo que quer, mas ao escolher o afeto de quem parece amá-lo por talvez não saber mais do que importa pra ele, sabe que precisa seguir em frente. “[N]A vida a gente tem que respirar fundo e ir. Manda tudo se foder e segue”.

[rating=3]

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Uma breve observação pós-texto que acho relevante: acompanho sempre de perto o cinema de Arthur Lins, desde os tempos de faculdade (como se poderá notar pesquisando pelo nome do diretor aqui no blog). Ainda que para muitos o longa-metragem é o rito de passagem para os olhares mais atentos em festivais, Desvio parece bastante coerente com toda filmografia prévia de Arthur, entre curtas e médias. Estão lá os tipos à margem da sociedade (O Plano do Cachorro), os lados artístico-sombrios do rural (O Fazedor de Filmes, Boi da Cara Preta, estes com Ely Marques) ou o comentário social sobre a vida do trabalhador “comum” (O Matador de Ratos). Dito tudo isso, nem de longe eu posso dizer que venho acompanhando de perto a nova e prolífica fase do cinema paraibano. Este provavelmente é o primeiro longa de ficção de vejo da nova safra, que recorrentemente vejo receber elogios nas coberturas de festivais que ainda acompanho moderadamente. Seja o terror de Ramon Porto (A Noite Amarela, disponível nas plataformas de VoD), as experimentações de Tavinho Teixeira (Sol Alegria) ou o drama de André Morais (Rebento) nenhum deles ainda pude conferir. Isso para falar dos que me vêm à memória sem consultas. Há certo orgulho de ver tudo isso, sim, porque acompanho à certa distância a gênese, quando tudo ainda eram curtas orbitando o curso de jornalismo na UFPB, as sessões da ABD-PB, o Nudoc, o Fest Aruanda ou o Comunicurtas. Espero em breve poder compensar esse espaço deixado que, claro, tem razão específica: o acesso a esses filmes é sempre a conta-gotas. No caso de Ramon e Arthur, que tiveram filmes adquiridos pela Vitrine Filmes para distribuição, é certo que aos poucos se tornem disponíveis não apenas no video on demand (aluguel/compra) mas também em plataformas de streaming especializado (Belas Artes, Looke e afins). É para acompanhar.

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