Depois de adulto, eu devo ter visto Clueless (As Patricinhas de Beverlly Hills, 1995) 3 ou 4 vezes. É um filme favorito, mas esse texto é sobre algo a mais. Acredite, a cada revisão você também desconstrói a falsa ideia de que esse é um filme que é um “guilty pleasure”, ou seja: que têm algumas coisas ali das quais você se envergonha, mas que “ainda assim é bom”. Algo que se costuma categorizar a filmes como Velozes e Furiosos. O caso ali é diferente: é guilty pleasure porque “é tão ruim que fica bom”. E até agora, sem revisa-los, sigo achando isso. Em sua “exploitation” de ação, carros, mulheres e lutas, ele acaba virando divertido como um experimento ao redor da pergunta “até onde Hollywood vai?”.
Mas Clueless não é sobre isso. O trabalho de Amy Heckerling, que agora completa 25 anos, começa a chegar à maturidade para estar, tranquilamente, na mesma prateleira qualitativa dos filmes de John Hughes. E a razão de tudo está nos pequenos detalhes.
Primeiro, o mais óbvio: o roteiro é uma adaptação livre de Emma, clássico de Jane Austen, recém adaptado para os cinemas em uma edição de visual pop e direção eficiente. Uma menina rica, loira, bonita, pretensiosa, manipuladora e órfã de mãe, vive de ser “organizadora” da vida social dos outros, tendo que lidar com um amigo tão próximo da família que é quase um irmão. Suas percepções de mundo vão se descontruindo à medida em que os seus comportamentos começam a ser revistos diante da adversidade das situações que ela tenta controlar, manipular. Essa breve descrição poderia estar na página dos dois filmes, facilmente.
E essa é a graça desse primeiro ponto: ao utilizar uma história consagrada, como tanto já se fez no cinema, Heckerling (que escreve e dirige, é preciso pontuar) faz com que sua comédia de costumes adolescentes seja muito mais anti-status-quo do que se imagina. Afinal, Jane Austen já era no século XIX. Tal qual Hughes faz em Clube dos Cinco, aqui se apresenta estereótipos para então desconstruí-los com a habilidade de roteiro e, sim, de mise-en-scene.
Segundo, as sutis quebras de expectativas: Cher é a “patricinha de Beverlly Hills” mas, mais de uma vez, fala sobre maconha sem deixar que isso seja um tabu ou segredo: “você pode curtir um numa festa, mas não viver como eles”. Na festa, curte um e depois ao presenciar uma briga da amiga: “ainda estou doidona”. Cher ainda é virgem aos 16 e quer se guardar para alguém especial. Reluta contra o assédio sexual do amigo no carro e ao encontrar a oportunidade de ficar com esse alguém especial, descobre que ele é gay. E aí o twist: eles se tornam ainda mais amigos, parceiros de compras, de consumo de arte. É com ele que ela aprende sobre as obras artísticas que seu pai mantém na casa como “bons investimentos”.
E claro, como muito bem pontuado pelo excelente vídeo do Wisecrack, Cher se redescobre aprendendo a dar menos importância ao que tem e sim ao que pode deixar de ter para ser melhor: ao decidir fazer doações de roupas, radicaliza e quer doar até os skis do pai. E é aí quando ela quebra os preconceitos com o skatista “maconheiro” e tem a primeira interação sincera e não esnobe com ele. Afinal, ele é dos únicos que está ali sendo quem realmente é e não aquilo que os grupos o impõem (como a própria Cher faz com Tai e depois a vê sendo pior que ela mesma). O que ela vai ter que deixar para trás, na verdade, são os comportamentos que fizeram com ela se tornasse a popular da escola.
O filme é amarrado em boas atuações dos atores do núcleo não adolescente, especialmente Paul Rudd, Wallace Shawn e Dan Hedaya. A atuação de Alicia Silverstone de fato não é das melhores, mas é difícil afirmar que algumas expressões afetadas não sejam intencionais. Ela é quem sustenta o filme inteiro, afinal. É com Paul Rudd que ela divide as melhores cenas de desconstrução de expectativas: Cher sempre está mais à vontade com Josh, assumindo uma postura mais crítica e menos “clueless” do que com as amigas de escola. Não à toa, várias vezes, está sem maquiagem carregada, com roupas de casa: ali está o território que ela vai descobrir ser bem mais valioso.
O que de fato é inegável é que Clueless é uma dessas obras adolescentes com muito mais camadas do que se imagina. E que por conseguir entregar essa profundidade em meio a uma série de gags divertidas ou pequenos comentários sobre comportamento adolescente, é um dos meus preferidos da vida.