O livro e o filme: a adaptação de Joe Wright para “Reparação” de Ian McEwan

Assisti Desejo e Reparação pela primeira vez provavelmente perto da época em que foi lançado ou algum tempo depois, o que significa que já faz no mínimo uns 10 anos. Então, na prática, eu só lembrava de duas coisas: a cena da biblioteca e algo do plano-sequência da praia de Dunkirk. Ambos os casos não por lembrança própria, mas por recorrentemente aparecerem em vídeos, em compilados, coisas assim. Na época que assisti ao filme, inclusive, não notei (ou não lembro se) o filme era uma adaptação da obra de McEwan, que vim a conhecer somente anos depois pela fama como ótimo livro. Desde então, sempre quis lê-lo.

Corta para 2021, quando finalmente li o livro e aproveitei o fato de que por lembrar de quase nada, evitei rever trailers ou cenas. Apenas me reservei o direito de não ficar brigando com o cérebro de cinefilia e relembrei quem mais atuava no filme além de McAvoy e Knightley.

É uma imensa experiência literária, mas não no sentido de duração (apesar das suas quase 500 páginas). McEwan escreve brilhantemente (dele também havia lido “Sábado”) e sabe particularmente usar um recurso invejável: investe tempo em longas descrições de ambientes e pensamentos, sem necessariamente entregar onde chegará com tudo aquilo – o que para muitos pode causar algum cansaço se é a primeira leitura do autor. O que ele faz como poucos é costurar isso de forma impecável em cada virada da trama, inclusive ganhando ares de thriller, por assim dizer.

O que Joe Wright faz aqui é dar sequência ao seu ótimo trabalho de adaptação do livro de Jane Austen (Orgulho e Preconceito foi o seu filme imediatamente anterior e é excelente). O que torna a coisa toda bastante britânica e auto referencial é que McEwan cita Austen na epígrafe de Reparação – assim como, de certa forma, retoma sua temática essencial: o amor entre pessoas de diferentes classes sociais.

Pois bem, como terminei de ler o livro e decidi rever o filme logo na sequência, é impraticável que eu consiga escrever um texto sem comparações. Até porque, enquanto adaptação, o trabalho do roteiro de Christopher Hampton é minuciosamente detalhista a partir do texto de McEwan. O “excluído” é unicamente o desnecessário para a narrativa de cinema fluir. A fluência inclusive é um detalhe de todo importante, já que o livro (e o filme) no fim das contas, é também sobre a capacidade de perceber a realidade, absolvê-la e transformá-la na versão que o interessa. E a forma de McEwan trazer a fluência que julga correta para isso é construindo pouco a pouco cada personagem – para que nunca nada fique sem um bom motivo para acontecer.

O que Joe Wright faz muito bem é se interessar por uma subjetividade em certas cenas que dialogam com as camadas que o livro impõe à sua trama. Então há, aqui, olhares que no texto eram apenas entrelinhas. Há impulsos, caminhos, paredes, cheiros, sensações que naturalmente sintetizam longos parágrafos em poucos segundos.

O que talvez Wright não faça tão bem é exercer mais expressivamente (ter coragem para isso) os tempos mortos que a narrativa pede. Às vezes há uma sensação de que são tantas coisas a se dizer e mostrar de forma precisa que não se deixa planos importantes respirarem, conduzindo as cenas com ainda mais intangibilidade e, assim, deixar o espectador respirar, imaginar e se colocar mais no lugar de Briony, por exemplo. Uma das poucas exceções é justamente a cena (ou as cenas) do famoso plano-sequência na praia de Dunkirk. Ali, cada passo que a câmera dá com os três soldados é um desenvolver particular, específico, que resume muito e amplia ainda mais o que se tem a mostrar, a contar, a respirar no filme.

Se Desejo e Reparação talvez não consiga ser tão emblemático quanto Orgulho e Preconceito na filmografia de Joe Wright, não é demérito nenhum: o filme se conduz, se afirma e se expressa tão claramente quanto sua obra literária inspiradora.


PS.: Desejo e Reparação possui um detalhe que entra na Teoria dos Objetos Inanimados (de Paul Auster, no livro O Homem no Escuro). O vaso quebrado logo no início do filme, além de representar a ideia de uma tradição familiar questionável na narrativa, acaba por se tornar a ruptura necessária para que a história de Robbie e Cecília finalmente avance. É o tipo de situação em que algo pequeno representa muito pouco para o que efetivamente acontece na cena da fonte, mas muito significativo para tudo que os dois viveriam dali em diante.

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